Acho o artigo abaixo bacana demais e, por isso, resolvi compartilhar a reflexão. Beijos, Karin Villatore
*Mário Ernesto Rene Schweriner Por que as pessoas sofrem? Fundamentalmente, quando suas necessidades não são satisfeitas: sono, ar, água, alimento, moradia, transporte, segurança, familiação, hospitais, todas elas condições psicobiológicas conectadas à (digna) sobrevivência do ser humano. São produtos e serviços essenciais.
Mas o surpreendente é que tantos há que também sofrem em significativa intensidade simplesmente porque não conseguem saciar desejos: pelo último modelo de bolsa, de sapato, de automóvel, a última moda de vestuário, o restaurante do momento, as marcas de grife, o luxo em evidência. Tais indivíduos ficam como que presos aos desejos, dos quais não conseguem se desvencilhar, e padecem ao não poder realizá-los. É, de forma simplória, o que denominei “necejos”, que serão esmiuçados adiante. Esses consumidores são motivados por produtos e serviços supérfluos.
Todavia, supérfluo não significa, em absoluto, um bem ou serviço negativo; inferior. Significa simplesmente secundário no rol das prioridades humanas. Atente-se para o que Veblen tem a contribuir a esse respeito: O emprego do termo ‘supérfluo’ é a certo respeito infeliz. Tal como é empregado na vida cotidiana, traz um timbre de condenação. É usado aqui à falta de um termo melhor, que descreva adequadamente a mesma série de motivos e fenômenos, e não deve ser tomado num sentido odioso, como se implicasse um dispêndio ilegítimo de produtos ou de vidas humanas.
De conformidade com a teoria econômica, o dispêndio em questão não é mais nem menos legítimo do que qualquer outro (VEBLEN, 1965, p. 99). Pode-se chegar a afirmar que o “supérfluo é necessário”. Explicando melhor: uma vida restrita ao necessário tenderia à vida de um mero animal selvagem, não a de um ser humano racional que arquitetou para si inúmeras fontes de prazer, fruto do neocórtex. O que pode ser dramatizado por um trecho de Shakespeare, em Rei Lear (apud BAUDRILLARD, 1995, p. 39): Oh, não discutam a ‘necessidade’! O mais pobre dos mendigos possui ainda algo de supérfluo na mais miserável coisa. Reduzam a natureza às necessidades da natureza e o homem ficará reduzido ao animal: a sua vida deixará de ter valor.
Compreendes por acaso que necessitamos de um pequeno excesso para existir? 1. Necessidades, desejos, o essencial e o supérfluo Observe-se como necessidades e desejos são definidos por um dos maiores especialistas mundiais do marketing, Philip Kotler, em seu livro de referência “Administração de marketing”: Necessidade humana é um estado de privação de alguma satisfação básica. As pessoas exigem alimento, roupa, abrigo, segurança, sentimento de posse e auto-estima. Essas necessidades não são criadas pela sociedade ou empresas. Existem na delicada textura biológica e são inerentes à condição humana (KOTLER, 1998, p. 27). E assim conceitua desejos: Desejos são carências por satisfações específicas para atender às necessidades. Um norte-americano precisa de alimento e deseja um hambúrguer, batatas fritas e uma Coca-Cola […] Uma pessoa faminta na Ilha Maurício pode desejar mangas, arroz, lentilhas e feijão (KOTLER, 1998, p. 27). E logo a seguir acrescenta um comentário defensivo eximindo os profissionais de marketing de criar necessidades ou que (em suas próprias palavras) o “marketing induz as pessoas a comprar coisas que não desejam” (p. 28). E como proceder para diferenciar desejos dessas necessidades?
O fato é que as necessidades são relativamente limitadas, universais e objetivamente demarcadas, os desejos são ilimitados, pessoais e subjetivos, sendo sempre uma especificidade das necessidades; uma opção particular do indivíduo. Isso gera a insaciabilidade dos consumidores, pois uma vez que um desejo tiver sido satisfeito, outro já se encontra à espreita. E são precisamente tais desejos ilimitados à matéria-prima da qual se alimenta a sociedade de consumo para atiçar os consumidores em direção a novos produtos e serviços permanentemente lançados no mercado para aplacar exatamente esses desejos sem fim.
Todavia, ao gerar essa cornucópia de produtos à disposição dos consumidores, a sociedade de consumo contribui para dificultar a demarcação das fronteiras entre necessidades e desejos, tornando-as menos nítidas, “embaçando” o conceito da “digna sobrevivência biopsíquica”. Habitação é necessidade. Mas quantos metros quadrados configuram uma residência “digna” por habitante? A partir de que metragem a moradia configura um desejo? Uma habitação de 6,5 metros quadrados seria aceitável? (Não, não é erro de revisão: são seis metros e meio quadrados mesmo…) Um grupo de ativistas lançou a Small House Society (Sociedade da Casa Pequena) para promover os benefícios ecológicos e econômicos das minimoradias.
Os modelos têm preços médios de US$ 40 mil e tamanhos que variam de 6 a 15 metros quadrados. (…) Johnson vive em uma moradia de 6,5 metros quadrados no Estado de Iowa, nos Estados Unidos. A televisão dá lugar a um notebook, alimentado pela bateria. A coleção de discos e CDs foi parar dentro de um tocador de MP3 portátil. (ÉPOCA, Ed.555, 5 jan. 2009, p.44,5) Alimento obviamente é necessidade: proteínas, vitaminas, carboidratos. Na forma de arroz, feijão, pão, macarrão. Temperados por desejo ou necessidade? Vestir-se é uma necessidade. Mas de quantas calças ou pares de sapato precisa um indivíduo “para trajar-se de uma maneira ‘digna’!”? Provavelmente, dependerá da classe social e de sua profissão, só para citar alguns fatores.
O tempo costuma ser outro fator que nubla as fronteiras entre as necessidades e os desejos na sociedade de consumo, porque vários desejos de hoje irão configurar as necessidades de amanhã. O telefone celular era nada mais que um luxo para os brasileiros no início dos anos 1990. Hoje chega a ser uma necessidade para a maioria dos indivíduos, mesmo porque, em virtude do seu baixo preço, ingressou nos domínios de consumo das classes C e mesmo D. Outrossim, o que é necessidade para uma determinada classe social equivale apenas a um desejo para outras inferiores. Indivíduos das classes A e B costumam encarar como necessidade direção hidráulica e ar-condicionado em seus automóveis, o que não passaria de um “mero” desejo nas classes C e D. Pois então é uma missão árdua a demarcação de fronteiras claras e seguras entre necessidades e desejos.
Erich Fromm, em sua clássica obra “Ter ou ser” (1977), caracteriza duas espécies diversas de ter, uma conectada às necessidades, outra aos desejos. A primeira ele denomina “ter existencial”, “porque a existência humana exige que tenhamos, conservemos, cuidemos e utilizemos certas coisas a fim de sobrevivermos. Isso se refere ao nosso corpo, ao alimento, habitação, vestuário e instrumentos necessários a satisfazer nossas necessidades”(FROMM, 1977, p. 94-95). O ter existencial está em contraste com o “ter caracteriológico”, “que é uma tendência ardorosa a reter e conservar o que não é inato, mas que se revelou como consequência do impacto das condições sociais sobre a espécie humana como biologicamente dada”(p. 95). Uma das mais conhecidas teorias acerca das necessidades humanas é a do psicólogo humanista Abraham Maslow (1954), lembrado por sua hierarquia das necessidades. Para ele, as necessidades humanas vão num crescendo das mais básicas – as necessidades fisiológicas, envolvendo oxigênio, supressão da fome, da sede, do frio, do sono, do calor e da dor – até as mais “elevadas” – as de auto-realização.
Entre esses dois extremos se localizam as de segurançae proteção, em seguida as sociais (de afeição e filiação) e depois as de status, envolvendo reputação, domínio e prestígio.Para Maslow, a necessidade de nível mais baixo deve ser substancialmente satisfeita antes que o sujeito seja motivado pela imediatamente acima. A teoria ERG[i]é uma espécie de adaptação da hierarquia de Maslow que melhor atende à pesquisa empírica. Elaborada por Clayton Alderfer (1969), da Universidade de Yale, reduz os cinco níveis de Maslow a três: as necessidades de existência englobam as fisiológicas e as de segurança; as de relacionamento correspondem às sociais e a algumas de status e, finalmente, as de crescimento ou desenvolvimento pessoal são similares às de auto-realização.
Uma segunda diferença do modelo de Maslow para a teoria ERG é que esta aceita que mais de uma necessidade pode estar ativada ao mesmo tempo, ao passo que Maslow preconizava uma progressão em que a necessidade de nível mais baixo deve ser substancialmente satisfeita antes de focar o degrau acima. Outra teoria de necessidades é a de McClelland (1961), a qual está erigida sobre três pilares: § Necessidades de realização – enfrentar desafios, superar obstáculos, fazer melhor as coisas. § Necessidade de poder – influenciar e controlar os outros; estar no comando. § Necessidade de associação – cooperação e aceitação pelos outros. As necessidades também podem ser classificadas, independendo da teoria, de um modo bem objetivo segundo sua natureza, em viscerogênicas e psicogênicas, sendo as primeiras de premência preponderante. As necessidades viscerogênicas se originam da carência (de água e de alimentos) e da distensão, que se divide em secreção, como sexo e lactação, excreções, como urinar e defecar, e finalmente evitar danos, como dor, calor e frio. Já as necessidades psicogênicas são em maior número, dentre as quais destaco realização, nutrimento, filiação, aquisição, dominação e autonomia. Essa classificação das necessidades pode ser ampliada, observando-se que as pessoas se movimentam continuamente entre dois pólos, sempre mediadas por produtos e serviços.
O primeiro deles consiste em evitar/sanar dor e sofrimento físico e psíquico, que configura o terreno das grandes e agudas necessidades humanas, que o consumo tenta mitigar, há milênios. Necessidades básicas, universais e muito parecidas para toda a humanidade. Isto é, principalmente água, nutrientes, saúde, segurança, transporte, moradia, vestuário, educação, família e amigos, e a proteção contra frio e calor intensos. A procura de estimulação prazerosa (gratificação)também constitui uma necessidade humana, universal e materializada pelo consumo (ou as pessoas ficariam restritas ao tédio): conhecer coisas novas, pertencer, criar, empreender, possuir, poder e sentir. Principalmente este último, a premiação dos órgãos dos sentidos: perfumes, beleza, música, estímulos táteis, alimentos saborosos. É o que se denomina “circuito algedônico”, advindo da combinação dos termos gregos algos (dor) e hedos (prazer), que traz constantemente ao indivíduo informações sobre seu estado presente, e que devem condicionar todo o seu comportamento, de se distanciar da dor e se aproximar do prazer.
Tais condutas foram analisadas pelo psicólogo Frederick Herzberg (1959), que cunhou a teoria da “Manutenção/Motivação”. Para ele, o ser humano vive o seu dia-a-dia entre o equilíbrio e a remoção da insatisfação, por um lado, e o equilíbrio e a busca da satisfação, por outro. Para Herzberg, a insatisfação é removida pelos fatores de manutenção, também chamados de higiene, com base na analogia de que lavar as mãos antes das refeições evita doenças, mas não garante boa saúde. Também podem ser chamados de fatores de “déficit”, pois são sentidos quando de sua ausência. Os fatores que conduzem à gratificação, consoante Herzberg, são chamados motivacionais, ou fatores de desenvolvimento. Uma vez materialmente satisfeitas as necessidades básicas – aquelas viscerogênicas e psicogênicas recém-listadas, ou mesmo as de Maslow – o sujeito acabará por emprestar mais importância à dimensão simbólica, cultural e prazerosa do consumo, fruto do querer, do que à sua dimensão funcional, fruto do precisar (SLATER, 2002). É o que Eduardo Giannetti, em seu livro “Felicidade”, denomina “bens posicionais”[ii], referindo-se aos que transcendem os “bens primários”, que satisfazem às necessidades humanas (GIANETTI, 2002). Pois um dos principais meios de ser reconhecido pelo outro é o de desejar (e evidentemente possuir) o objeto que também é almejado por esse outro, o que René Girard denominou “desejo mimético de apropriação”.
________________________________________ [i] ERG – Do inglês Existence, Relationship, Grow. [ii] O termo, porém não o conceito, é de autoria de Fred Hirsh em Social limits to grow.