Arquivo do autor:talkcomunicacao

10
set

Daumier e o Imperador

Honoré Daumier (1808-1879) foi um dos artistas que melhor retratou o povo francês do século XIX.  Pintor, ilustrador e caricaturista de mão cheia, seu lápis foi implacável com os poderosos, principalmente políticos, oligarcas, juízes, advogados ou qualquer outra pessoa que se colocava contra os mais humildes e injustiçados pelo sistema.  O talento de Daumier foi descoberto cedo e com menos de 20 anos de idade seu trabalho já era reconhecido em toda a França.   Em sua carreira, Daumier produziu mais 4 mil litografias, a maioria publicadas em jornais republicanos franceses, como La Caricature e La Charivari.  Duas das caricaturas de Daumier das mais interessantes para nós brasileiros são aquelas que retratam o imperador D Pedro I, descobertas que viraram livro do expert no assunto, Alvaro Cotrim, o caricaturista Alvarus.  Em uma delas, Daumier mostra o imperador barrigudo, careca e vestindo uma camisola, em um visual muito diferente da imagem legada pela tradição.

DR 67

A legenda(traduzida): Sir! Lisboa foi tomada – Aaaah !! …..e eu sonhei que eu estava lutando bravamente. Uma das especulações mais interessantes de Alvarus é que Daumier poderia ter conhecido in loco D Pedro I, durante uma temporada que o soberano passou em Paris, pouco antes da guerra com o irmão mais novo pelo trono de Portugal. E por isso talvez tenha produzido o retrato mais fiel do imperador brasileiro.

Por Zé Daniel

3
set

Dedo na ferida

Este não é um texto que fala sobre assuntos dos quais gostamos de saber – ele fala do que precisamos ler e ver, ainda que não gostemos. Em 1945 Anne Marie Frank, 15 anos, morreu em um campo de concentração. Ela estava entre os 108.000 judeus deportados da Holanda entre 1942 e 1944. Apenas 5.000 sobreviveram. Entre eles, seu pai, Otto Frank, que criou um memorial para que a história da filha – que escreveu um dos diários mais famosos do mundo durante a Segunda Guerra Mundial – não fosse esquecida. Anne, sua família e quatro amigos Anne Frankpassaram quase dois anos escondidos em um anexo secreto atrás de uma fábrica em Amsterdã, mas você provavelmente já conhece esta história. Em abril, eu pude ir ao anexo secreto. Não era um sonho da minha vida estar lá, era um lugar triste – mas com uma memória que precisa existir, perdurar e, mais que isso, ser vista e sentida. É o que acontece quando você se aproxima o suficiente: sente. Somente através da identificação e da empatia, de se sentir no lugar do outro, de imaginar o sofrimento pelo qual o outro passou, é possível fazer com que essa história nos atinja e faça pensar.

Quando eu saí do memorial, me deparei com um pedido provocativo: o de deixar uma mensagem sobre o que senti ao visitar a casa de Anne Frank. Só consegui escrever “não deixem que aconteça o mesmo com as crianças da Síria”. Estamos em setembro. Exatamente quatro meses se passaram. Hoje, vejo o mundo chocado com a imagem de um menino sírio de três anos. Morto, como Anne, 70 anos depois. Não em um campo de concentração, mas em uma praia da Turquia. Sua família não havia passado anos escondida em um cubículo. Sua família fugiu de seu País, como a de Anne ao ir para a Holanda em busca de segurança. Em comum, acabaram todos mortos – com exceção do pai. Quantas famílias terão que morrer para que o mundo perceba o problema?! Para que as autoridades tomem consciência? E para que a gente cuide dos mais vulneráveis: crianças, animais, idosos?! A mudança que queremos no mundo começa por nós, já falaram por aí.

Muitos fogem do sofrimento: “eu não quero ver”, dizem. Ver significa sentir e, nessa sociedade anestesiada, tudo o que não queremos é sentir. É preciso sentir. A crise migratória europeia é coisa séria e não devemos fechar os olhos. Não por curiosidade mórbida, mas porque infelizmente é a visibilidade que pressiona para que haja mudança. Cuidemos de nosso quintal, cuidemos das nossas crianças. E que mais jornalistas, fotógrafos e cidadãos mostrem o que é preciso ser visto.

Hoje, digo: “não deixem que aconteça o mesmo com as crianças de lugar nenhum”.

Luciana Penante

28
ago

Tem alguma coisa muito errada com o mundo

O milho verde é amarelo, o quadro negro é verde, o halls preto é branco e o cantor Belo é feio. Esse monte de bobagem é apenas para descontrair ou uma forma leve de começar o texto, já que o assunto do qual resolvi escrever hoje não é nada engraçado.

o mundoAndo chocada com a quantidade de homicídios noticiados diariamente. Homens, mulheres, crianças, ricos, pobres, brancos e negros. O Brasil repercutiu bastante ontem a morte de dois jornalistas dos EUA que foram covardemente assassinados por um ex-colega de trabalho no momento em que faziam uma transmissão ao vivo. Por ser jornalista, fiquei ainda mais sensibilizada. Um país tão desenvolvido, mas que possui uma população fortemente armada. Os números assuntam e algumas fontes garantem que 90% dos domicílios dos EUA possuem arma de fogo.

No Brasil o porte de armas é restrito, mas infelizmente isso não garante a nossa segurança e nem que essas armas não cheguem às mãos de bandidos e cidadãos comuns. Independentemente das armas de fogo, o crime no País cresce de maneira assustadora. Antes falávamos da violência nas grandes cidades, agora vemos crimes bárbaros, com motivos torpes, assombrar os mais pacatos munícipios do interior.

É quase impossível ler um site de notícias que não tenha ao menos duas ou três matérias sobre desaparecimento de pessoas e assassinatos, muitas vezes cometidos por vizinhos ou até mesmo familiares das vítimas. Quando leio algo sobre isso, sempre fico comovida. O impacto é ainda maior quando acontece na minha cidade ou quando envolve crianças. A imensidão de notícias sobre esse tema jamais o tornará algo banal. Quem tem o direito de acabar precocemente com a vida de alguém? Quem merece morrer dessa maneira?

“O mundo está ao contrário e ninguém reparou”, já dizia um trecho da música de Cássia Heller e Nando Reis.

Aline Cambuy

21
ago

Longe de tudo

Tivemos que dormir em Porto Seguro porque só tinha ônibus no dia seguinte. No guichê da Viação Brasileiro, o moço vendeu as passagens para Itamaraju e também as para Corumbau.

CorumbauChegamos ao primeiro destino, cidade estranha e cheia de menções a assassinatos em nossa pesquisa no Google. Surpresa: acho que hoje não tem ônibus pra Corumbau.

A chuva foi fraca, o ônibus saiu e conseguimos atravessar a estrada de terra.  São apenas 200 quilômetros entre Corumbau e Porto Seguro. Mas toma um dia inteiro. Um dia bom, que leva você ao ritmo da praia mansa de água esverdeada, dos pescadores da vila, da ponta de areia que avança sobre o mar, do arroz de polvo, do Tio Ari, da espera pelas baleias, da pousada rústica, do mercadinho, da vista do Monte Pascoal, da aldeia dos Pataxós.

A região é conhecida como Costa do Descobrimento e fica no extremo Sul da Bahia. Em tupi, Corumbau significa longe de tudo.

 

Como chegar: Viação Brasileiro – (73) 3288-3650 – Porto Seguro a Itamaraju – Saídas às 6h30 e às 8h. R$ 27,08 / Itamaraju a Corumbau – Saída às 14h40. R$ 18,40

Onde ficar: Jocotoka – (73) 3288-2291 / site www.jocotoka.com.br/ email jocotoka@jocotoka.com.br / Chalé com 01 quarto e 01 banheiro (cama de casal ou 02 camas de solteiro) R$ 230,00 a diária/ Chalé com 02 quartos e 02 banheiros (01 quarto suíte com cama de casal + 01 quarto com 02 camas de solteiro) R$ 320,00 a diária

Quem procurar: Evandro trabalha na Jocotoka e tem uma empresa de turismo em Corumbau. Organiza o que você precisar e conhece todo mundo

Karin Villatore

 

13
ago

As medianeras…

Uma das esquisitices dessa vida que muito me encantam são as medianeras. Também conhecidas como “paredes cegas” que, por mim, são muito bem vistas. Gosto de andar pelas ruas olhando (mesmo de dentro do ônibus) para os edifícios, tentando achar essas paredes que não possuem janelas, portas ou qualquer outra abertura.

Tudo começou quando assisti um dos filmes argentinos que mais gosto, cujo nome é o tema do post. O filme, de 2011, escrito e dirigido por Gustavo Taretto, é para quem gosta de longas com metáforas (algumas vezes, bem piegas), pois ele lança reflexões, inter-relacionando a crise da existencialidade, das relações sociais, da melancolia e da solidão urbana com as formas desorganizadas das cidades e da arquitetura, especificamente de Buenos Aires. A principal metáfora da trama são as medianeras.

“Todos os prédios, todos mesmo, têm um lado inútil. Não serve para nada, não dá nem para frente, nem para o fundo, a “medianera”; superfícies que nos dividem e que lembram a passagem do tempo, a poluição e a sujeira da cidade. As “medianeras” mostram nosso lado mais miserável, refletem a inconstância, as rachaduras, as soluções provisórias… É a sujeira que escondemos debaixo do tapete…” (trecho do filme Medianeras, 2011, Argentina).

Esse item arquitetônico, que tem um impacto negativo na paisagem urbana, tem ganhado novas soluções, como as propagandas, painéis artísticos de graffiti ou de mosaicos, de LED ou intervenções – como no centro de Curitiba, que revelam o Ray Charles e o Jack, de O Iluminado – recebem também revestimentos com diversos materiais, tal qual o vidro ou jardins verticais, entre outros. Vale tudo para “dar vida” àquela parede que tentamos cotidianamente ignorar.

Marcielly Moresco

(credito foto WASHINGTON CESAR TAKEUCHI_Site_Circulando_por_Curitiba)

7
ago

No tempo do vinil

Vive certamente um momento estranho aquele que, como eu, nunca parou de ouvir músicas em discos de vinil.  Os preços dispararam e ficou praticamente impossível encontrar o desejado registro por um valor que não faça você ter um ataque do coração.  É profundamente  melancólico.  Incrivelmente, ninguém nos anos 1990 queria saber dos bolachões. Você encontrava discos por preços inacreditáveis comparados aos de hoje, as pessoas jogavam suas coleções na rua ou mandavam para reciclagem. Lembro-me de ter comprado um lote com dois mil discos, uma verdadeira pechincha, e no meio dele tinha uma coleção oriunda de uma escola primária, com gravações raríssimas de músicas infantis e de MPB.  Segundo a senhora que me vendeu, os vinis foram encontrados por ela no lixo, pois a escola renovou a biblioteca musical com cds.

R-2866333-1304697315.jpeg

A facilidade para encontrar, o preço e o prazer de ouvir algo que eu não ouviria normalmenteforam os principais motivos para começar a comprar vinis.  Poderia, assim, ouvir boa música e curtir as capas com aquelas fotonas de artistas e desenhos cheios de psicodelia, meus preferidos. Embora neste ramo não me considere um colecionador, sou mais um acumulador de discos, considero relevante algumas dicas para aqueles que estejam pensando em começar ou retomar a coleção.   

 

– Como já disse o pensador Walter Benjamin, a maneira mais pertinente de começar uma coleção é herdando. Portanto, olho na parentada!

– Caso você não tenha parentes em vista, sua coleção não irá muito longe sem dinheiro. É melhor nem começar. Colecionar é uma riqueza, de certo modo é o que você faz com o excedente, com a sobra. Significa transformar seu dinheiro em um objeto passional. Portanto, colecionar é um investimento.  Mas não pense que isso basta para encontrar aquela avis rara. Tem que procurar.

– No caso de usados, o ideal é que o estado de conservação do vinil esteja impecável, a não ser que seja obra raríssima e imprescindível para compor a coleção.

– Antes de comprar discos mais caros, é importante conferir a cotação. Um dos melhores lugares para isso é o portal discogs.com, que reúne vendedores do mundo inteiro. Você vai ver que nem tudo que falam que é raro é tão difícil e caro assim.

– Fuja desses toca-discos novos com design vintage. O som deles é horrível.

– Aposte em coisas diferentes, inusitadas, com preços mais convidativos.

Gostaria de voltar no tempo daqueles balaios onde era possível, pois aconteceu comigo, encontrar à venda por R$ 5 o álbum “Deus, a Natureza e a Música”, de Hyldon, trabalho primoroso, cheio de soul e boas energias.  Hoje, caso você conseguir achar essa preciosidade, terá que desembolsar por volta de R$ 300. E não posso deixar de citar o maravilhoso Murituri, do saudoso comediante e ator Arnaud Rodrigues, uma das maiores pauleiras gravadas nos anos 1970, avaliado hoje em R$ 750. Foi adquirido por R$ 1 em uma das minhas andanças pelos sebos de Curitiba.  Pensar nisso me dá uma saudade do tempo do vinil.

31
jul

A Massa Crítica

“A massa crítica de um material fissionável é a quantidade necessária para manter uma reação nuclear em cadeia autossustentada. A massa crítica de um material fissionável depende das suas propriedades nucleares, das suas propriedades físicas (a densidade, em particular), a sua forma, e a sua pureza”, segundo a Wikipédia. A pouco tempo descobri, no entanto – e para você pode não ser novidade –, que existe um movimento chamado “Massa Crítica”, que se apropria desse conceito para tentar aplicá-lo à sociedade. Também li na internet um estudo recente de física quântica que indica que “um  único quantum de uma onda de alta frequência, de alta vibração, numa linguagem mais acessível, pode carregar, sozinho, mais energia do que muitos quanta de outra vibração mais baixa”.

massa criticaOu seja: aplicando isso ao dia a dia, é possível acreditar que pensamentos positivos se propagam muito mais que pensamentos negativos. Baseado nesse conceito, existe a ideia de que é possível que a humanidade dê um “salto evolucional” se um determinado número de pessoas evoluir – e não todos. Assim é mais fácil acreditar que a humanidade tenha um futuro, não?!

Aqui no Brasil existe um movimento inspirado na Massa Crítica, a Bicicletada (bicicletada.org). É um coletivo, mas você não precisa fazer parte dele para ajudar o mundo a ser um lugar melhor para se viver, ou pode, se quiser. Mas já ajuda ter pensamentos bons. Se não der certo para o mundo, vai, pelo menos, melhorar a sua vida. 

Luciana Penante

23
jul

O que é mais importante

Esses dias uma postagem no Facebook me chamou a atenção. Era um texto com o título “5 coisas com as quais você deve e não deve gastar dinheiro”. Resolvi ler e me identifiquei bastante. A introdução dele propunha uma reflexão sobre a importância de investir em momentos que ficarão na memória para sempre ao invés de gastar dinheiro com coisas que acabam facilmente.

reileaoAcho que tudo é uma questão de valores. O que tem mais valor na sua vida? Na minha as coisas mais importantes giram em torno de bons momentos com a família e com os amigos, conhecer lugares diferentes, estudar, viver novas experiências, enfim, algumas coisas que custam dinheiro e outras nem tanto. Meu carro não é novo, nem velho. É um carro popular, que serve exclusivamente para o transporte. Levar os filhos para a escola, ir para o trabalho e algumas pequenas viagens. Há dois anos penso em trocar, mas sempre me deparo com outra prioridade, como viajar com as crianças e estudar inglês.

Meu celular quebrou e precisei substituí-lo. Vi vários modelos legais, mas optei pelo mais simples, que atende às minhas necessidades e não era tão caro. Investi em um violão legal para o meu filho mais velho e em uma viagem de férias para ele. Para mim, foi uma escolha muito mais interessante que comprar um celular de última geração. Até porque a última geração de telefones, assim como a e de qualquer eletrônico, é cada vez mais efêmera. Logo o mercado lança algo melhor e mais inovador e seu aparelho será obsoleto.

Felizmente fui influenciada pela minha mãe. Ela sempre falou para mim e para meus irmãos que priorizaria a educação dos filhos e que isso seria a nossa herança. Que investiria o máximo em nossos estudos e não se preocuparia em ter o carro do ano ou comprar imóveis.

Concordo com ela e faço o mesmo com meus filhos. Vamos estudar mais, ler mais, aprender outros idiomas, tocar algum instrumento, conhecer novos lugares e pessoas diferentes. Enfim, para mim, isso é viver.

Aline Cambuy

16
jul

Versões sobre a mesma guerra

Bem no começo dos anos 90 eu chegava a ensopar o pijama com meus pesadelos sobre a guerra civil na antiga Iugoslávia.  Isso porque eu passava boa parte do dia editando imagens e produzindo textos sobre as barbáries dos sérvios (os grandes malvados) e dos croatas (não tão medonhos, mas também cruéis) contra os coitadinhos dos vizinhos bósnios.

guerra-da-bosnia-help-bosnia-nowSarajevo (o “j” tem som de “i”), a linda e culta capital da Bósnia, sitiada e aterrorizada pela presença dos franco-atiradores que, de cima das montanhas que circundam a cidade, faziam tiro ao alvo com a população que corria para procurar um resto de pão. Campos de limpeza étnica exterminando bósnios, de maioria muçulmana. Carnificina pura. Um auê.

Eis que num desses domingos chuvosos e frios começo a zapear e avisto um documentário no Eurochannel. Toscamente produzido, mas bem realista, o filme descrevia uma versão bem diferente daquela guerra. Os bósnios e os sérvios e os croatas foram igualmente maus, era o discurso. O problema é que os sérvios e, principalmente, o líder deles (Slobodan Milosevic) eram aliados dos russos. Os Estados Unidos de Bill Clinton estavam precisando de uma guerra para ganhar dinheiro e apoio político (o documentário explica os detalhes). Clinton manipulou ataques a civis bósnios, mexeu com a opinião pública e fez com que a entrada dos EUA na guerra parecesse genuína.

Quando o documentário terminou, fiquei tentando lembrar quantas matérias fiz tomando absoluto partido para um lado. Eu e o mundo todo, naquela época. Eu me senti um fantoche, e me perguntei se hoje seria menos fácil manipular a opinião pública. Por fim, já quase dormindo, cheguei à conclusão de que foi uma inocência injustificada. Afinal, não precisa ser nenhum Einstein para descobrir que nenhum lado é totalmente bom ou mau na guerra.

Karin Villatore

9
jul

Quem transgride quem?

Há uma verdade mais dura por trás das transgressões de crianças e adolescentes: a realidade delas e deles, tão distinta da maioria de nós.

Há cinco anos eu pesquiso essa parcela minoritária da população, milito por, com e para aqueles que possuem suas vozes silenciadas pela dominante sociedade. Dediquei boa parte dos meus anos de pesquisadora aos que necessitam da transgressão para manifestarem que também são sujeitos e sujeitas de direitos. Nos últimos dois anos eu literalmente me sujei na lama da pesquisa empírica sobre adolescentes em conflito com a lei, especificamente aqueles 1-FF7fYzx91xYUKwFOQvPxxwque cumprem medida socioeducativa de liberdade assistida ou de prestação de serviço à comunidade; conversei com eles, andei pelos bairros e comunidades onde vivem, visitei suas moradias (algumas muito precárias), presenciei alguns, ainda tão crianças e inocentes, empinando pipa (ou raia, como eles chamam), ou observei o tráfico bem em frente à porta da casa de um deles, falei com as pessoas (nem sempre eram familiares; mas, quase sempre eram monoparental) com quem moravam e, de um extremo a outro, passei por condomínios classe média para falar com algumas exceções que se envolveram em delitos. Alguns sofreram e/ou sofrem violência em casa, ou foram abandonados e outros não tinham quem sequer perguntasse “como foi seu dia na escola”.

Após as visitas, chegava em casa de alma exausta e com fome de justiça, igualdade e proteção. Chorava. Talvez seja essa a experiência que mais me permitiu conhecer e compreender realidades muito além da que eu vivencio, possibilitando tornar-me muito mais sensível ao olhar o outro.

Na disposição social e política de trancafiar os jovens e o debate (debate?) sobre a redução da maioridade penal, sobram abundantes projetos de leis alterando o Código Penal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (logo este, que constituiu uma significativa conquista para a minoria a partir dos anos 1990, na qual começava-se a tratá-los como sujeitos de direitos e não com a higienização da população, tal como era o Código de Menores). Sobra isso, mas falta o olhar sensível e compreensivo para a realidade da maior parte desses jovens que, muitas vezes, são privados de recursos, de atenção, de amor, de família, de acesso à saúde, educação, cultura, entretenimento. Falta contemplar as localidades em que moram, falta um diálogo com eles, falta um esforço para compreender nosso sistema prisional problemático e faltam investimentos no acesso à educação e nas próprias medidas socioeducativas.

Deixo algumas problematizações que podem fazem caminhar para uma reflexão nesse momento de decisões políticas: são os adolescentes que estão em conflito com a lei ou é a lei que está em conflito com os nossos adolescentes? E quem deve ser responsabilizado pela não garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes?

Marcielly Moresco

Foto: Nair Benedicto