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jan

A multa e o luto

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Recebi uma multa. Não foi uma qualquer, mas sim uma “infração gravíssima ao artigo 280, parágrafo terceiro do Código de Trânsito Brasileiro”. Para os não entendidos, o condutor infrator, vulgo eu, foi flagrado fazendo uso de telefone celular com o veículo em movimento. Veículo em movimento, segundo o CTB, é qualquer carro que não esteja estacionado apropriadamente com o motor desligado (meu nazista gramatical interior grita).

No momento que recebi a notificação de autuação já comecei a desacreditar do carteiro. “Não, você não pode estar fazendo isso comigo!”, dizia eu incrédulo. “Mas eu sou só dos Correios, moço”, respondia o rapaz de azul e amarelo inocentemente constrangido. “Eu não posso estar recebendo uma multa I-D-Ê-N-T-I-C-A à de um mês atrás. Eu mereço!”, saí vociferando, praguejando e mancando, visto que estou com o pé quebrado.

Nisso minha cabeça fervilhava. O universo estava de sacanagem com a minha cara. Já não basta estar preso em casa, com o pé quebrado, um calor dos infernos, ainda me vem outra multa. Ainda por cima um repeteco da anterior, nem para serem originais! Malditos periquitos, câmeras de trânsito e delatores de infratores de trânsito. Que vocês passem a eternidade pisando em legos e batendo o dedinho na quina da mesa.

Para completar a tragédia só faltava agora começar uma terceira guerra mundial ou termos a volta do Roberto Carlos nos especiais de Natal. Comecei a relembrar de todas as catástrofes que assolaram a minha vida, desde a tia da cantina me dizer que tinha acabado a coxinha lá pelos meus 11 anos, até todos os vídeos de alguém maltratando animais. O mundo está perdido!

Mas, talvez nem tudo estivesse perdido. Quem sabe a minha situação fosse passível de salvação. Passei a procurar freneticamente alguma forma de não pagar a multa. Vasculhei a internet e mandei mensagem para vários conhecidos esperando alguma resposta para o meu dilema… afinal, eu era uma pessoa boa, não poderia estar acontecendo isso comigo. Tentei lembrar quem poderia assumir os pontos. Cogitei pedir patrocínio familiar para dividir as despesas. Enfim, tudo isso num intervalo de 15 minutos de autonegociações.

Foi então que me bateu a triste realidade: eu teria que arcar com as consequências dos meus atos, como gente grande. “É, mané, agora você vai ter que dominar essa bola no peito e assumir a bronca. Não foi você o bonzão que não conseguiu esperar até estar fora do carro para olhar o zap zap? Então. Te vira! Dá teus pulo!”

Não sei vocês, mas a minha voz interior faz bullying comigo. Eu a imagino como um daqueles atores de filmes de ação: dois metros de altura, 120 quilos de puro músculo e poucas palavras para dizer, exceto meia dúzia de frases de efeito. Ou quem sabe minha voz interna seja o Mano Brown do Racionais MC.

Mas daí o meu lado suscetível veio à tona. Relembrei de todos os momentos em que a vida tinha me derrubado do meu unicórnio lilás, como diz o Leandro Karnal. Senti de novo todas as tristezas de todos os castelinhos de areia que construí com as minhas expectativas de vida. “Nada dá certo pra mim, mesmo! Minha existência é uma mentira! Leave Britney alone!”, dizia meu outro eu interior que mais parece uma adolescente fã de Hanson quando descobre que eles estão velhos demais para responder às 673 cartas de amor enviadas 20 anos atrás.

Foi quando uma outra voz interna, esta bem mais racional, sensata e madura, me disse: “Ei, já deu. Toda ação tem uma reação, não adianta espernear nem querer chantagear o universo. Tudo acontece por um motivo. Senta, reflete e só aceita”, disse meu eu interno que mais parece uma astróloga ou psicóloga transpessoal de quarenta e poucos anos com aquelas roupas indianas e sandália de Moisés. E sabe que a moça aqui de dentro tinha razão? Parei. Devo, não nego, pago quando puder. Só tenho que andar na linha por um tempo agora para não perder a carteira, parar de ser tão cabeçudo e passar a respeitar as leis de trânsito. Uhul, estrelinha para mim.

Antes que eu comece um diálogo entre o Mano Brown, a fã do Hanson e a psicóloga transpessoal, quero dizer que depois disso tudo eu tive uma epifania: Eu acabei de superar o luto pela multa de trânsito!

Você provavelmente já ouviu falar que quando perdemos um ente querido passamos pelo processo do luto. A tristeza, a negação, a raiva e a falta de aceitação hoje são sentimentos bem conhecidos e reconhecidos por aqueles que já sofreram alguma perda. Isso se deve ao trabalho da psiquiatra suíça Elisabeth Kübler-Ross, autora do livro On Death and Dying, em que apresenta o modelo que leva seu nome. Este modelo descreve estágios pelos quais passa uma pessoa quando lida com perdas, luto e tragédias. Eles se tornaram populares e são conhecidos popularmente como Os Cinco Estágios do Luto: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. Reconheceu algum no meu relato ali em cima? Muito bem, continue.

Neste ponto você deve estar se perguntando: “Mas que diabos o luto tem a ver com uma multa de trânsito?” Eu explico. Kübler-Ross, ou Bete para os íntimos, explicou que esta metodologia aplica-se a qualquer forma de perda pessoal “catastrófica”. Além disso, também alegou que nem todo mundo passa por todos os estágios ou nesta ordem específica, mas que todos experimentam pelo menos dois.

No meu caso, tudo aconteceu num intervalo minúsculo de tempo, com alguns surtos psicóticos internos das vozes na minha cabeça e coceiras dentro da bota que está aprisionando meu pé numa existência horrível. Porém, é bem nítido que os aspectos do luto descritos pela Bete podem se encaixar nas mais variadas situações da vida, não precisa ser só no velório daquele tio, a que sua mãe obriga a ir mesmo sabendo que você só o viu duas vezes quando estava de fralda e aparentemente arrancou um tufo de cabelo da orelha dele com um golpe de gengiva.

Existem nuances diferentes da importância das coisas para as pessoas, os indivíduos têm histórias de vida, formações e aptidões diferentes entre si. Não podemos colocar todos em uma caixinha só, mas podemos destruir as caixinhas e perceber que tudo pode se aplicar a todos em alguma situação ou momento, e tudo pode ser compreendido de uma forma mais leve, inclusive o luto.

Câmbio, desligo.

Lucas Jensen

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