Não há pessoa que passe pela Rua Rosa Saporski em Curitiba que consiga ignorar a casa mais fora do tradicional o possível, que eu e amigas da época de escola apelidamos carinhosamente de Casa dos Hippies. Situada nas Mercês, bairro tradicional da cidade, e em meio a vários sobradinhos sóbrios e austeros que lembram um condomínio europeu, a casa amarela se destaca. Seja pelas árvores nunca podadas, pelos símbolos esotéricos espalhados pela calçada ou pela bunda – sim, uma bunda – pintada num tronco em frente a casa, a construção é digna de olhares curiosos. E não só dos moradores do bairro – segundo a dona, ônibus cheios de turistas já pararam por ali para fotografar.
Pregada no muro, uma placa avisa “Cuidado, cão bravo”, mas quem vem latindo quando se toca a campainha é uma cadela linguicinha. Quando se passa pelo portão da casa, logo se nota a calçada, que parece feita dos ladrilhos de brilhante daquela canção antiga, mas que, na verdade, é de granito reciclado. Um carro branco tão excêntrico quanto tudo ali fica estacionado no fundo da garagem cheia de cacarecos. Parece uma mistura de Kombi com um daqueles carros-fortes que carregam dinheiro. Onde deveria ser o jardim, há quase que uma pequena floresta, com várias árvores plantadas, dentre elas uma macieira e uma pereira. Na frente da casa, além do muro, um misto de mudas encobre um banquinho, disponível para qualquer um, corajoso, diga-se de passagem, sentar-se lá.
Qualquer um que entra na casa se vê num relicário de histórias perdidas. Violões pendurados, relógios antigos, cassetes doados por uma locadora quando esta modernizou o sistema para o DVD, uma coleção completa de anõezinhos que vinham no Kinder-Ovo nos anos 90 e uma quantidade absurda de televisões e cabos eletrônicos espalhados pelo chão, pelo teto, pelas paredes. Cada objeto da casa tem seu valor, não financeiro, mas emocional. A casa tem ao todo quatro estreitos andares, e no terceiro existe um tesouro inestimável. Uma maquete de uma cidadezinha imaginária construída pelo filho engenheiro do casal toma conta do aposento. Confeccionada com perfeição, tem cada detalhe muito bem pensado.
O andar acima é um desafio, até para conseguir alcançá-lo. Para até lá, há uma escada na parede nem um pouco indicada para quem tem medo de altura. Mas o risco de subi-la vale, e muito, a pena. Um quartinho minúsculo cujo teto é todo decorado de painéis eletrônicos, chips de computador e tudo mais, faz com que o ambiente pareça uma nave especial. Uma luneta gigante cor de cobre fica guardada ali, e quando dá, o casal vai ao terraço para observar o céu à noite.
A maior parte das coisas foi reformada pelo dono da casa, o verdadeiro colecionador das traquitanas e tralhas, visto que pela esposa a bagunça não seria tanta – “a gente não dá conta de arrumar tudo”, diz ela. Quem os vê na rua não imagina que morem numa casa assim. Ele, um homem já grisalho e um pouco fora de forma, de diferente tem no máximo as mãos, que tem alguns dedos faltando. Já ela é uma senhora fofa, com bochechas rosadas e cabelos pretos cortados bem curtinhos, que carrega sempre uma corrente com pingente em forma de cruz. Casados desde o antigo colegial, os dois vivem ali há 38 anos e não levam uma vida muito fora dos padrões: têm dois filhos, que já moram em outros lugares, a cadelinha e alguns gatos espalhados pela casa. E, ao contrário do que muitos pensam, a casa também não tem mistério. “O que você tem que saber, é que nós não gostamos de ter nada igual ao dos outros, por isso a casa é assim”, declara o dono, com um orgulho que se vê nos olhos.
Hoje, a casa já faz parte do coração daquela parte das Mercês. Se um dia algum vizinho acordasse e não a visse mais lá, certamente perderia a fome de tomar café. A rua perderia o brilho e o colorido. A Casa dos Hippies faz algo mágico: desperta a curiosidade e o espírito de aventura presente em cada um que passa por lá. É impossível não sentir vontade de pular o muro e explorar. Quando alguém passa, certamente se pergunta “Quem é que mora nessa casa tão bizarra? Um louco, uma bruxa, um hippie?” Mas acontece que não é nada disso, mora lá o homem grisalho e a senhora fofa, num mundo que, para eles, não passa de normal.