Nesta semana, teve fim a tão comentada novela do horário nobre da Rede Record, “Os Dez Mandamentos”. Ou, conforme o espectador descobriu, não foi um final propriamente dito: no ano que vem, a partir de março, haverá uma segunda temporada das histórias da trupe de Moisés. Que a emissora tentou, a todo custo, prolongar o sucesso da atração, é fato. Que ela perdeu qualidade por isso, idem. Isso não quer dizer, contudo, que a adaptação escrita por Vivian de Oliveira não tenha o seu valor.
Mas antes de falar sobre isso, gostaria de comentar acerca das “opiniões especializadas” sobre o assunto. Se a novela gerou boa audiência, chegando por vezes a bater a Globo, a crítica, digamos, “profissional”, de imprensa, a desprezou.
Na Folha de S. Paulo – exemplo que escolho citar aqui por se tratar do maior jornal do país, e cuja análise resume bem a tônica geral – podemos ler um texto que é mais revelador sobre quem o escreveu – suas idiossincrasias, seus juízos de valor etc – do que sobre a história de Moisés e companhia. Escreve a repórter, acerca do capítulo mais aguardado, no qual os hebreus atravessam o Mar Vermelho: “O senso do espetáculo era tanto que ao primeiro sinal do mar abrindo Fafá de Belém poderia surgir cantando ‘vermelho, vermelhaço, vermelhusco, vermelhante, vermelhão, e Galvão Bueno narraria esbaforido: ‘É tetraaaaa!’”.
Toda crítica é, sim, uma tomada de posição. Mas isso não significa que o crítico não deva ter um domínio dos códigos que propõe analisar. Do contrário, a crítica se torna mera impressão – algo de que a internet já está cheia.
Dentre as muitas críticas “especializadas” que pulularam pela web estão as que dizem respeito ao aspecto religioso dos donos da emissora, em cujo mérito não entrarei. Em outras, podemos ler ressalvas sobre certo “engessamento” ou “artificialidade” dos atores. Pois uma telenovela, dizem os entendidos de plantão, deve ser naturalista, isto é, ter atuações que façam jus à realidade.
Essa visão de que à novela cabe ter os pés fincados na realidade, me parece, é uma boa razão para explicar a queda de audiência das novelas da Globo no horário das 21 horas. A emissora parece crer nessa estética do real, ao menos na faixa em questão. E, indo além, parece buscar certa inspiração dos anti-heróis contemporâneos, presentes em seriados norte-americanos, ainda que por vias um tanto tortas.
Na recente Babilônia, por exemplo, quem estivesse zapeando e caísse no canal enquanto a atração era transmitida poderia conferir a qualquer instante as protagonistas, ambas vilãs, em pé de guerra, sempre ofendendo muito uma a outra. Em um seriado americano, de doze capítulos por temporada, e uma hora por semana, tal fórmula “pesada” pode até funcionar bem. Mas numa atração diária, em horário nobre, pode ser bastante cansativa – razão primordial do fracasso de Babilônia, acredito. Pois de amarga, já basta a vida.
“Os Dez Mandamentos” caminhou justamente na direção oposta. Seu charme residiu em seu aspecto de exagero: na voz de radialista das antigas de Deus enquanto conversava com Moisés; nos rompantes de fúria do faraó, vilão arquetípico, contra os hebreus; em certa inocência/simplificação no retrato das relações humanas, sejam de amor ou familiares. Há uma beleza, algo de lúdico, no kitsch produzido pela Record.
Some-se também o aprimoramento não apenas cosmético como estético – sim, até as escolhas da decupagem Record ficaram mais sofisticadas, menos aleatórias, se comparadas com atrações antigas – com o fato de que temos agora uma versão brasileira de uma narrativa tradicionalíssima da cultura ocidental, e possuímos razões de sobra para entender o sucesso da novela de Moisés.
Daniel Felipe