A vida é um grande espetáculo. Não é por menos que autores como Shakespeare e Nelson Rodrigues escreviam tão bem a realidade de sua época em forma de teatro. E o que acontece quando um artista se transforma em um espetáculo de sua própria vida? Ou, ainda, quando a sua existência transcende a vida humana, transformando-se em uma obra artística que sobrevive ao tempo?
No último final de semana fui assistir ao espetáculo “Elis, a Musical”, uma produção baseada na obra de Nelson Motta e Patrícia Andrade, com direção de Dennis Carvalho e que esteve em curta temporada no Teatro Guaíra. No palco, eram mais de 25 pessoas, entre atores e músicos, e outras 300 pessoas envolvidas na produção que recria em dois atos as diversas fases da vida desta cantora que, mais de trinta anos após sua morte, continua sendo a maior cantora do Brasil.
Nesta montagem, o que mais impressiona é, sem dúvida, a personagem título, pois quem vai assistir ao espetáculo espera ver uma grande Elis Regina. E confesso, deu até medo. Nós, atores, evitamos usar o termo “encarnar a personagem”, para não resumir uma peça de teatro a uma simples sessão de mesa branca. Afinal, o processo de construção de personagem é um estudo complexo que exige conhecimento, técnica e talento. Mas, nesse caso, a interpretação da atriz Laila Garin, que disputou o papel com outras 200 candidatas, chega a seduzir e iludir o espectador, tamanha é a semelhança na aparência, voz, gestual, postura e até a maledicência natural da personalidade de Elis.
Isso denota um talento incrível da atriz, uma equipe de caracterização primorosa e um processo intenso de imersão na vida e na obra da artista, com aulas diárias de canto, interpretação e expressão corporal. Tudo para recriar com perfeição momentos da artista em cenas famosas como a sua participação no Festival de Música cantando “Arrastão” com Jair Rodrigues (também perfeito!), “Águas de Março” com Tom Jobim, e a mais impressionante cena, digna de fechar o espetáculo com chave de ouro: a entrevista concedida por Elis ao programa “Ensaio” da TV Cultura, em 1973.
Em vários momentos, fechei os olhos para ter a sensação de estar ouvindo a própria Elis Regina cantando ali, a poucos metros de mim. Das cinquenta músicas cantadas, em 3 horas de encenação, pelo menos quarenta músicas foram interpretadas por Laila, a Elis do musical. A atriz conseguiu me encantar a ponto de eu querer chegar perto, tocá-la, sentir aquela Elis de verdade e mais viva do que nunca.
Ao final do espetáculo, no fim da cena da entrevista, a atriz, com figurino idêntico ao usado pela cantora na ocasião, retira a flor que enfeita seus cabelos curtíssimos, coloca na cadeira e sai de cena, deixando somente a cadeira e a flor iluminada por um único foco de luz, enquanto os demais atores entoam a música “Redescobrir”. Nesse momento, o pensamento inevitável é: por que a genialidade do artista sucumbe à realidade? Será esta vida tão incompreensível às mentes brilhantes? Será por isso que, como diz Renato Russo, os bons morrem jovens?
Logo, o pensamento é interrompido com a vinda de todo o elenco, cantando alegremente e agradecendo a presença do público, até que a última a entrar em cena para agradecer é ela, a atriz-Elis-Laila, desta vez para acabar com qualquer ilusão criada desde o início, fazendo o espectador cair em si e entender que a personagem não é a atriz, e que o teatro não é a realidade. Laila retorna ao palco sem a peruca curtíssima e, como se tivesse deixado nos bastidores o corpo e o espírito da personagem, se mostra completamente diferente, com seus longos, loiros e encaracolados cabelos.
Sai do Guaíra em estado de graça e ainda mais apaixonada pela arte teatral, a única que tem o poder de envolver e surpreender até mesmo quem conhece o que há por trás das cortinas.
Aldy Coelho