27
nov

Nunca diga nunca

*Sugiro que leia esse texto ouvindo a música “Podres Poderes”, do Caetano Veloso.

Esse texto não é (apenas) sobre as minhas férias. Esse texto não é (apenas) sobre os lugares nunca3que visitei, as comidas que provei, as pessoas que conheci. Esse texto é (também) sobre civilidade, cidadania e memória.

Caminhei muitos quilômetros por Buenos Aires. Preferi fazer os trajetos a pé, para perceber a cidade, as pessoas e entender um pouco melhor a vida dos nossos vizinhos.

Em 15 dias encarei duas greves de banco, três manifestações distintas contra a Cristina Kirchner, a economia e sabe mais Deus o que. Também pude presenciar uma “virada cultural”, que reuniu mais de um milhão de pessoas nas ruas na chamada “noite dos museus”.

Um dos meus programas preferidos quando viajo é observar os muros das cidades. Realmente acredito que as paredes falam, ou que a sociedade fala por meio dos muros. Pelas inscrições conseguimos ter uma ideia bem clara do que pensa/vive a juventude, como vai a economia, em que pé estão as eleições, quais são os quereres do povo. Os muros são excelentes periódicos.

Muito comuns, as pichações e grafites que fazem referência aos anos da ditadura militar me chamavam a atenção, e sei como a memória dos argentinos com relação ao passado assombroso dessa época é muito mais viva que a nossa. Aliás, é viva.

Em um passeio pelo centro, no entanto, me deparei com um stêncil que dizia: “nunca digas nunca, um documentário sobre desaparecidos na democracia”. Foi como um soco na boca do estômago ao meio dia de terça-feira.

Não que eu seja ingênua de não saber que as pessoas desaparecem de maneiras mais escusas e estranhas pelas mãos de milícias, polícias e vai saber mais quem. Mas a questão é como tratamos disso no Brasil. Ou melhor, como não tratamos.

 Gente como o Amarildo, que some do mapa sem deixar rastros. Gente como os 43 estudantes mexicanos que não se tem notícias há semanas. Gente que, geralmente, tem muito a dizer e pouca ou nenhuma influência, e que apenas somem. E que nós, não nos importamos.

 Esse papo do “gigante acordou” para mim sempre foi uma balela, porque pelo que eu saiba, eu não estava dormindo, não. Nem eu, nem todas as mulheres que sofrem abusos diários nas ruas, nem os homossexuais, nem os negros, nem os pobres, nem as famílias desses desaparecidos, nem muita gente que sequer conseguiu dormir um dia.

 Me defrontar na rua com um chamado como o “nunca digas nunca”, me fez entender que não só não “acordamos”, como estamos muito longe de nos entendermos como cidadãos. Fiquei incomodada comigo mesma, com algumas de minhas escolhas e com muitas pessoas ao meu redor. Minhas férias foram como uma cirurgia de catarata, onde agora é possível ver a mim, ao meu povo, ao mundo, de maneira mais clara. Ainda que não seja uma visão otimista.

 Vou e volto com meus pensamentos e só consigo pensar nas palavras do Caetano. “Será que nunca faremos senão confirmar a incompetência da América católica, que sempre precisará de ridículos tiranos”?

 Marina Oliveira. 

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